terça-feira, 16 de agosto de 2011

A cura da doença oncohematológica e o medo persistente dos pais: algumas considerações




Rita de Cássia Macieira, psicóloga; psico-oncologista pela Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia (SBPO)


Receber o diagnóstico de uma doença oncohematologica em sua criança pode ser uma das noticias mais avassaladoras que os pais conseguem suportar. O futuro promissor e feliz, tantas vezes sonhado, encontra-se ameaçado. O medo toma conta dos corações e a incerteza, causada pela ameaça de morte, converte o dia a dia em um pesadelo. As estatísticas mostram que sucesso do tratamento é cada vez mais uma realidade. Este dado traz algum alívio e aumenta a esperança. Mas a apreensão ainda persiste - e se o tratamento não der certo? E se algo acontecer com meu filho? - são as perguntas mais comuns.

A sensação de irrealidade e o trauma gerado a partir do momento do diagnóstico permanecem durante o tratamento e muito tempo após o seu término. A angústia e o medo de uma recidiva se mantêm presentes no campo da consciência.

Com a confirmação do diagnóstico todas as energias físicas e psíquicas da família são canalizadas para a sobrevivência e para a possibilidade de cura da criança adoentada. E mesmo quando a cura realmente acontece, os pais ainda não conseguem se tranqüilizar. Danièle Brun, psicanalista francesa, em seu importante trabalho intitulado "A criança dada por morta: os riscos psíquicos da cura"[1] ,fala da situação paradoxal que vivem os pais, especialmente a mãe, das crianças curadas de câncer. Segundo a autora, uma criança nascida da fantasia dos seus pais, se opõem à existência da criança real curada. Mesmo após a recuperação física, esta criança continua marcada com o selo da morte, mantendo o processo de luto vivenciado pelos seus próximos. E é "indispensável enveredar por estes desvios para constatar a mobilidade de que é objeto a identidade da criança doente: transposições e mutações nas fantasias daqueles que a doença reúne à sua volta." A ajuda terapêutica precisa levar em consideração essa criança fantasiada, tida como morta, para se entender e atenuar os efeitos traumáticos ligados à notícia da cura.



As mudanças de rotina

O nosso inconsciente não conhece a doença e a morte. Este é um dos motivos que ouvir que nós estamos doentes ou alguém da nossa família causa uma sensação de irrealidade. As nossas emoções e mecanismos adaptativos de defesa contra o medo também contribuem bastante. E depois, em nosso contexto sociocultural, o adoecimento é um obstáculo ao nosso progresso. Com o diagnóstico, sentimentos intensos de perda, abandono e culpas aparecem em todos os envolvidos e decorrem da situação clínica da criança ou são intensificados por experiências passadas[2]. A adaptação dolorosa e a até então, desconhecida realidade, exigirá uma série de mudanças na rotina e mesmo na dinâmica familiar. É preciso tempo para a assimilação psicológica desta nova situação.

As mudanças no curso da vida familiar que começam com a confirmação da doença continuam durante o curso do tratamento. No turbilhão de pensamentos e emoções despertados no processo, é difícil se concentrar em algo que não a necessidade imediata. Desafios e obstáculos são vencidos diariamente: inicio do tratamento, recaídas, comorbidades, dificuldades. Muitas vezes, um dos pais passa a se dedicar integralmente à rotina do tratamento. Quando isto acontece, há uma cisão com a vida profissional e conseqüente alteração no padrão socioeconômico da família. Irmãos também podem se ressentir pelo investimento reservado à criança doente. Por um lado, isto pode causar sensação de abandono, chegando até o adoecimento. Por outro, pode conduzir a uma sensação de independência. O retorno à normalidade familiar após o tratamento e reabilitação representa mais uma alteração mental e estratégica, nem sempre sem atritos.

Durante todo o processo de tratamento e após este, a ajuda de um psico-oncologista pode ser importante no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento, no treinamento de habilidade de gerenciamento de estresse, ou a colocar a situação em perspectiva e ainda, ao fornecer apoio emocional nas crises.


Reorganização da vida após a alta hospitalar


Duramente a princípio, o tratamento da doença oncohematologica vai estabelecendo uma nova rotina na vida da criança e de seus pais, que inclui muitas idas ao hospital, internações e exames. Enfim, chega o tão esperado momento da alta hospitalar.

Mesmo sendo tão desejado este é também um momento de muita ansiedade, que exigirá um novo esforço de adaptação. Até então, a responsabilidade e os cuidados com a criança eram compartilhados entre os pais e equipe de saúde. Com a alta hospitalar os pais terão que se reapropriar dos cuidados com o seu filho e conviver com o medo da recidiva.

A espada de Dâmocles é uma alusão frequentemente usada para remeter à precariedade do poder que as pessoas têm sobre os perigos que podem lhes acometer a qualquer momento, desestabilizando suas vidas. Conta a historia que diretamente sobre a cabeça do rei Dionísio de Siracusa (século IV A.C.) pendia uma afiada espada, suspensa por um único fio de rabo de cavalo, simbolizando a fragilidade humana e o medo, mesmo para um rei.

Assim, todas as pessoas convivem com a incerteza porque a espada de Dâmocles pende suas cabeças. Medo do futuro, da violência que assola as grandes cidades ou da morte. Mas o paciente curado de câncer ou seu familiar podem ter a consciência constante da presença dela. E isto pode trazer um sentimento de ansiedade, o medo de uma desgraça iminente. Receber a alta hospitalar pode fazer este medo recrudescer - e se eu não perceber que o câncer voltou?

Pais de crianças curadas podem se sentir desprotegidos longe da equipe de saúde. Ou ainda, sentirem que não têm informação suficiente sobre como lidar com suas limitações, frustrações, desafios ou com as seqüelas físicas e/ou psicológicas deixadas pela doença.

A reinserção escolar é outro fator angustiante para os pais. Os efeitos do preconceito, da curiosidade e do medo da exposição social na escola são estressantes para as crianças e causam sofrimento psíquico nos pais. Parece haver uma tendência a um conluio entre pais e filhos para protelarem este momento de adaptação a uma nova realidade passível de criar incertezas e ansiedades. Informações e orientações sobre as especificidades da doença de seu aluno, sobre os tratamentos a que será submetido e acerca dos avanços terapêuticos, são importantes instrumentos de ação para os professores[3], pois lhes permitem antecipar questões, identificar e intervir para amenizar problemas apresentados pela criança ou no relacionamento desta com os demais alunos. Com estas medidas também será possível ajudar os pais a enfrentarem melhor seus medos sobre o retorno da criança à escola e a angustia de separação que isto gerará.

Adolescentes curados de câncer costumar afirmar que amadureceram com o adoecer, que aprenderam mais sobre perdão, compaixão e a valorizar a vida. Ainda assim podem se ressentir da superproteção parental desenvolvida nas diferentes fases do processo de tratamento. Contrariando o temor dos pais, os adolescentes precisarão ser incentivados para vencerem os sentimentos de isolamento social e preocupações com a auto-imagem[4]; precisarão ser autorizados à busca de independência, responsabilidade e crescimento existencial através da compreensão e assunção de seu processo. Eles, seus pais, necessitarão ajuda para estarem preparados para fazerem isto com propriedade.

Efeitos sobre o relacionamento conjugal dos pais

Como constantemente lembrado em toda literatura sobre o câncer e seus efeitos, vivenciar o diagnóstico e tratamento causa grande estresse no paciente e na família, não importa a idade do portador ou o tipo de doença. No entanto, o comportamento e o modo de organização familiar podem fazer diferença significante no enfrentamento do câncer e suas consequências.

Casamentos constituídos por uma sólida relação sofrem abalos, como se é de esperar. Todavia podem até se fortalecer no embate pela reconquista da saúde. Aqueles mais fragilizados, cercados por problemas ou pendências não resolvidas devem ser foco de mais atenção por parte da equipe de saúde, especialmente do psico-oncologista. Algumas vezes, o diagnóstico da doença na criança pode mesmo recuperar o relacionamento dos pais, fazendo os pares reavaliarem suas diferenças e redescobrirem o lado harmonioso e saudável da convivência.

Contudo pode acontecer que alguns casamentos não resistam e aconteça a separação do casal. Quando isto ocorre é necessário um cuidado maior tanto com as crianças quanto com os pais, notadamente com aquele que assume o papel de cuidador familiar principal, devido às repercussões psicossomáticas que o aumento de estresse pode causar, elevando o risco de complicações de saúde física e psíquica.

Outras vezes, durante o tratamento da criança, a resolução das dificuldades conjugais acumuladas passa para o segundo plano. Nesse momento, o olhar dos pais se prende aos cuidados com o filho adoecido, restando tempo e energia apenas para assuntos mais prementes. Com a cura da criança e a busca do retorno às condições normais de vida, as situações problemáticas congeladas voltam à superfície, talvez acrescidas por acontecimentos ocorridos durante o tratamento.

Pode acontecer também de pais que vivem uma relação relativamente harmoniosa em período anterior à doença se distanciarem durante o tratamento, mas ainda assim se manterem juntos. Com a cura do câncer, estes casais serão obrigados a reverem a problemática pendente.

Independente da qualidade do relacionamento, a cura da doença oncohematologica do filho representará alterações na dinâmica da vida conjugal. Algumas mudanças são muito positivas tais como ter mais tempo para cuidarem de si mesmos e para os outros filhos, retomada de antigos sonhos, possível melhora no padrão financeiro e esperança de ter encerrado um período difícil. Para aqueles que aprenderam a expressar entre si suas emoções, que aumentaram a cumplicidade e praticaram o exercício da conjugalidade, esta nova fase poderá ser de crescimento.



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